OpenEHR
A interoperabilidade dos dados clínicos continua a ser um dos principais desafios enfrentados por instituições, profissionais e governos no que diz respeito transformação digital em saúde. Os sistemas de Registo de Saúde Eletrónico (RSE) tradicionais, para além de frequentemente marcados por falta de interoperabilidade, também apresentam interfaces desatualizadas, altos custos de manutenção e estruturas rígidas que dificultam a sua adaptação a novos requisitos clínicos. Além disso, muitos sistemas de informação apresentação fragmentação de dados, dependência tecnológica de fornecedores específicos e com pouca capacidade de integração com novos dispositivos, plataformas cloud, aplicações móveis ou fluxos clínicos complexos. Neste cenário, surge o openEHR como uma resposta arquitetónica e semântica a estas falhas, propondo uma abordagem centrada na flexibilidade estrutural, na participação ativa dos profissionais de saúde e na longevidade dos dados clínicos.
O que é o openEHR?
O openEHR é um conjunto de especificações abertas, baseada em normas internacionais, desenvolvida para auxiliar a criação e manutenção de RSE. Define um conjunto de modelos, linguagens e regras para o armazenamento, gestão, recuperação e troca de dados de saúde, com enfoque na semântica, na modularidade e na longevidade da informação clínica. É um padrão computacional que separa a lógica da informação técnica do conhecimento clínico, permitindo que a evolução científica e prática não obrigue a alterar a infraestrutura tecnológica. O seu propósito fundamental é definir os componentes de uma plataforma computacional de saúde que responda a desafios centrais da área, nomeadamente:
- Complexidade da informação clínica e dos fluxos de trabalho;
- Constante mudança dos requisitos clínicos;
- Necessidade de um registo centrado no utente;
- Integração entre diferentes fornecedores de software e componentes.
A sua proposta não visa apenas a interoperabilidade técnica (como o HL7), mas também a interoperabilidade semântica e computacional, sustentando aplicações como sistemas de apoio à decisão, integração com dispositivos móveis, medicina personalizada e inteligência artificial. Desenvolvida por uma fundação sem fins lucrativos e sustentada em colaboração internacional, o openEHR caracteriza-se por promover uma arquitetura de dois níveis (Dual model), que separa o modelo técnico dos dados da representação do conhecimento clínico. Esta separação confere ao sistema flexibilidade e capacidade de adaptação, permitindo que os dados se mantenham válidos mesmo quando as práticas clínicas ou os sistemas tecnológicos evoluem.
Estrutura e funcionamento
A arquitetura do openEHR consiste em um modelo de dois níveis (Two-level modeling ou Dual model). A sua estrutura organiza-se no seguinte modo:
- Modelo de referência (Reference Model-RM): Define a estrutura genérica e estável de armazenamento de dados clínicos. Estabelece os tipos de dados, hierarquias e regras fundamentais que asseguram a integridade e persistência da informação ao longo do tempo, o que permite organizar registos clínicos de forma coerente.
- Modelos de Conteúdo Clínico (Arquétipos e Templates):
- Arquétipos (Archetypes): Modelos formais e detalhados de conceitos clínicos (ex: um modelo de “pressão arterial” especifica todos os elementos, unidades, codificações e restrições semânticas que definem esse conceito). Estes são definidos e validados por especialistas da área e são independentes de qualquer tecnologia ou sistema específico;
- Templates: Combinam e adaptar múltiplos arquétipos a contextos de casos de uso específicos, como uma nota de alta hospitalar ou um formulário de rastreio oncológico. Este modelo assegura que o significado clínico dos dados é compreendido não apenas pelo software que os gere, mas também por sistemas terceiros, profissionais de saúde e até algoritmos de inteligência artificial.
Esta separação permite que o conhecimento clínico evolua de forma autónoma em relação à estrutura técnica dos sistemas, possibilitando uma maior adaptabilidade e sustentabilidade dos sistemas de informação clínica ao longo do tempo.
A especificação não se limita à modelação da informação, tendo também em consideração o versionamento, em que cada alteração ao conteúdo clínico ou à estrutura dos modelos é registada de forma imutável e auditável e, uma linguagem própria de consulta – a AQL (Archetype Query Language) –, tudo com o objetivo de tornar os RSE mais reutilizáveis, compreensíveis e, permitir a rastreabilidade clínica, jurídica e científica dos registos.
História e evolução
| Sigla | openEHR |
| Designação | openEHR Foundation |
| Data de Fundação | 2003 |
| Entidade Criadora | University College London (UCL) e GEHR Australia |
| Entidade Gestora | openEHR Community Interest Company (CIC) |
| Tipo de Entidade | Organização sem fins lucrativos |
| Estatuto Legal | Community Interest Company (desde 2018) |
| Área de Atuação | Registos de Saúde Electrónicos, Interoperabilidade semântica, Modelação clínica |
| Missão | Desenvolver especificações abertas e sustentáveis para sistemas de informação clínica interoperáveis |
| Sistemas e Ferramentas Associadas | CKM, AQL, Archetype Designer, EHRbase, openEHR Specs |
| Arquitetura | Modelo em dois níveis (Reference Model + Archetypes/Templates) |
| Utilizadores | Hospitais, ministérios, fornecedores de software, investigadores |
| Função Principal | Estruturação, armazenamento e reutilização semântica de dados clínicos |
Linha do tempo da origem e evolução do openEHR
Década de 1990
Início dos anos 90 – O Dr. Alain Maskens (oncologista belga) e o Dr. Sam Heard (clínico geral australiano e professor no St. Bartholomew’s, em Londres) lideram um consórcio para desenvolver um modelo genérico de registo eletrónico de saúde.
1991 – Criação do consórcio GEHR (Good European Health Record), coordenado pela Faculdade de Medicina do St. Bartholomew’s Hospital, com o Professor David Ingram como Diretor do Projeto e apoio de Lesley Southgate.
1992 – Início oficial do projeto GEHR, com sete parceiros industriais, académicos e profissionais. Desenvolvimento de uma arquitetura pioneira baseada em modelação orientada a objetos, que influenciaria a norma CEN ENV 12265 e os primeiros esforços de padronização de registos clínicos na Europa.
1993 – O consultor Tom Beale junta-se ao projeto, criando o primeiro modelo de objetos GEHR.
1994 – Encerramento formal do projeto GEHR.
Segunda metade da década de 1990
1995 – David Ingram torna-se Professor de Informática em Saúde na University College London (UCL), onde funda o CHIME – Centre for Health Informatics and Multiprofessional Education.
1995–1997 – Lançamento do projeto europeu Synapses, liderado por Ingram, com a participação da Siemens e outros parceiros. Introduz-se o conceito de modelo duplo, com separação entre estrutura e conteúdo clínico, permitindo a implementação de servidores clínicos piloto em diversos países europeus.
1996 – Na Austrália, Sam Heard e Tom Beale retomam os princípios do GEHR, desenvolvendo o modelo de objetos GEHR Australia. Este modelo aprofunda a abordagem arquetípica e a modelação de dois níveis, com contribuições de Peter Schloeffel e parcerias com o DSTC (Distributed Systems Technology Centre).
Transição para o openEHR
1998 – Surge a ideia da criação da openEHR Foundation, com o intuito de unir os esforços da UCL e da Austrália numa iniciativa de código aberto, com rigor clínico e base técnica sólida.
Fundação e consolidação
2001 – Realiza-se uma reunião internacional em Londres, juntando Heard, Beale, Schloeffel e Kalra, que alinham metodologias e confirmam a compatibilidade entre as abordagens desenvolvidas nos diferentes continentes.
2003 – Constituição oficial da openEHR Foundation como entidade sem fins lucrativos com sede na UCL, com ativos bloqueados. A sua missão é levar a interoperabilidade semântica dos registos clínicos a uma escala global.
2003–2014 – Período de consolidação técnica, desenvolvimento das estruturas de governação e colaboração com organizações internacionais.
Nova estrutura organizacional
2014 – Início de uma nova fase com a criação de uma estrutura formal de membros e a eleição de um conselho de administração representativo da comunidade global.
2018 – A Fundação transforma-se numa Community Interest Company (CIC) sediada em Londres, garantindo a continuidade dos princípios de abertura, independência e envolvimento comunitário.
Parcerias e reconhecimento internacional
2021 – Estabelecimento de uma parceria estratégica com o HL7, promovendo a interoperabilidade entre o openEHR e o standard internacional FHIR.
2024 – Grandes empresas tecnológicas, como a Microsoft, passam a integrar o ecossistema openEHR como parceiros estratégicos, reforçando a maturidade e a relevância internacional da iniciativa.
Governação e comunidade
A governação do openEHR é assegurada por uma estrutura clara e transparente, organizada em programas e liderada por uma direcção eleita. A entidade legal da iniciativa é a openEHR Community Interest Company, uma organização sem fins lucrativos e com activos bloqueados, registada no Reino Unido. O seu funcionamento é sustentado por uma comunidade internacional de membros subscritores, tanto individuais como institucionais, que elegem a direção e participam ativamente nos processos de decisão. A estrutura organizativa do openEHR inclui quatro programas principais:
- Specification Program – Responsável pelo desenvolvimento técnico das especificações openEHR;
- Clinical Modelling Program – Supervisiona a criação e revisão dos modelos clínicos (archetypes e templates);
- Software Program – Promove o desenvolvimento de software de referência e ferramentas open-source;
- Community Program – Apoia a participação da comunidade e iniciativas educativas e de adoção global.
Cada programa tem líderes nomeados e opera com equipas abertas, sendo as decisões tomadas com base em princípios de abertura, colaboração e revisão por pares. A openEHR mantém ainda diversos comités e grupos de trabalho, incluindo o Management Board, que supervisiona a estratégia e o funcionamento geral da organização, e o International Board, que garante a representação global da comunidade. A governação é documentada publicamente e todas as decisões e contribuições são registadas em canais acessíveis, reforçando a transparência e a legitimidade técnica e comunitária do openEHR. Um dos pilares da governação openEHR é o Clinical Knowledge Manager (CKM), um repositório público onde se criam, traduzem, discutem e publicam archetypes clínicos. O CKM é multilingue, colaborativo e auditável, envolvendo profissionais de saúde e especialistas em informática clínica de dezenas de países.
Vantagens e contributo para sistemas de informação em saúde
A proposta do openEHR oferece um conjunto de vantagens estratégicas e operacionais:
- Separação entre conhecimento clínico e lógica técnica, permitindo adaptar os sistemas a novas necessidades sem reestruturar as bases de dados.
- Reutilização de modelos clínicos validados, promovendo consistência e redução de erros.
- Independência de fornecedor, com suporte a múltiplos formatos e tecnologias (PostgreSQL, JSON-B, NoSQL).
- Interoperabilidade semântica internacional, facilitada pela integração com terminologias clínicas como SNOMED CT, LOINC ou ICD-10.
- Versionamento e auditoria nativa, assegurando integridade legal e clínica dos registos.
- Facilidade de adaptação a projetos de saúde digital, inteligência artificial e análise de dados clínicos, graças à granularidade e estruturação dos dados.
Estas características fazem do openEHR uma infraestrutura semântica de referência, especialmente indicada para projetos nacionais, redes de saúde, hospitais universitários e sistemas de saúde orientados à medicina personalizada e preventiva.
Desafios e limitações
Apesar das suas vantagens, a implementação do openEHR não está isenta de obstáculos, nos quais se destacam:
- A utilização de ADL (Archetype Definition Language), AQL e ferramentas como o Archetype Designer requer investimento formativo;
- A governação de modelos clínicos demora tempo e exige consenso entre múltiplos peritos e revisores;
- A performance pode ser impactada pela complexidade das consultas em grandes volumes de dados, especialmente em arquitecturas mal otimizadas;
- A integração com sistemas legados e aplicações comerciais continua a depender de soluções de mapeamento específicas e nem sempre triviais.
Ferramentas, projetos e comunidades
O openEHR conta com várias ferramentas, projetos e comunidades:
- CKM (Clinical Knowledge Manager) – https://ckm.openehr.org
- Especificações técnicas – https://specifications.openehr.org
- Servidores open-source – EHRbase, EtherCIS, EHRServer
- Bibliotecas – Archie (Java), pyEHR (Python), openEHR SDK
- Ferramentas de modelação – Archetype Designer, Template Designer
- Interfaces REST e integração com FHIR – através de APIs e mapeamentos bidireccionais
- Repositórios de código – GitHub openEHR, GitLab EHRbase
- Comunidade internacional – fóruns, grupos regionais, publicações e projetos académicos