Direito ao Esquecimento / Right to Be Forgotten (RBFT)
Introdução
O Direito ao Esquecimento (RTBF) é um dos direitos previstos pelo Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD), como um conceito jurídico que visa proteger a privacidade dos indivíduos ao permitir que dados pessoais sejam apagados, especialmente na era digital.
A discussão deste direito e a sua aplicabilidade ao contexto da saúde torna-se especialmente relevante no atual contexto dos grandes avanços tecnológicos que utilizam Big Data e sistemas de Inteligência Artificial (IA). Por utilizarem grandes volumes de dados, uma das questões que se coloca relativamente a estes sistemas relaciona-se com as permissões de acesso a estes dados, uma vez que são dados recolhidos para determinados fins e que podem ser indevidamente utilizados, para fins diferentes daqueles pelos quais foram recolhidos. Neste âmbito, coloca-se a questão de cada indivíduo ter direito de apagamento dos seus dados pessoais.
Esta discussão obriga necessariamente a considerar outros valores e direitos éticos, como o direito à privacidade, o direito à identidade e o equilíbrio entre os direitos e liberdades individual e o interesse público.
Fundamentos do Direito ao Esquecimento
O RTBF encontra-se legalmente reconhecido no Artigo 17 do RGPD da União Europeia. Este artigo prevê o direito do titular dos dados à exclusão dos seus dados pessoais sempre que se verifiquem certos fundamentos, nomeadamente:
- Os dados já não serem necessários para o propósito original
- O titular retirar o consentimento (Artigo 6 e artigo 9) e não existir outra base legal para o tratamento dos dados
- O titular se opuser ao tratamento dos dados (Artigo 21) e não existirem motivos legítimos superiores para o continuar
- Os dados terem sido tratados ilegalmente
- Os dados precisarem de ser apagados para cumprir uma obrigação legal
Este direito, no entanto, não se aplica se o tratamento dos dados for necessário para a liberdade de expressão, cumprimento de obrigações legais, interesses na área de Saúde Pública (Artigo 9), investigação científica (Artigo 89) ou defesa de direitos em processos judiciais.
Questões Éticas e Legais no Contexto de Dados de Saúde
O RTBF não é um direito absoluto e, como tal, quando o tentamos aplicar ao contexto dos dados de saúde, pode entrar em conflito ou colocar em causa outros direitos, pelo que deve ser feita uma reflexão sobre outros conceitos.
Podemos até questionar se este direito é admissível relativamente aos dados de saúde ou ter diferentes perspetivas consoante o dilema em discussão.
O RTBF está intrinsecamente ligado ao direito à privacidade, pois ambos têm como finalidade proteger a informação pessoal e garantir que os indivíduos têm controlo sobre como os seus dados são colhidos, utilizados e divulgados. A privacidade é um direito fundamental que permite ao indivíduo determinar o alcance do acesso a informações pessoais, preservando sua intimidade e autonomia.
Autonomia
O princípio da autonomia refere-se ao direito dos indivíduos de tomarem decisões livres e informadas sobre suas próprias vidas, incluindo o controlo sobre suas informações pessoais (informational self-determination). O RTBF fortalece a autonomia ao permitir que as pessoas decidam quais dados desejam manter públicos e quais preferem que sejam apagados. Isso é especialmente relevante na era digital, onde informações podem permanecer acessíveis indefinidamente, impactando a capacidade do indivíduo de gerir a sua identidade e reputação.
Beneficência e Não Maleficência
Os princípios de beneficência e não maleficência exigem que as ações promovam o bem-estar e evitem causar danos aos indivíduos. O RTBF atende a esses princípios ao possibilitar que informações desatualizadas, irrelevantes ou prejudiciais sejam removidas, evitando potenciais danos emocionais, psicológicos ou sociais. Por exemplo, a exclusão de dados que possam levar à discriminação ou estigmatização promove o bem-estar do indivíduo e previne danos desnecessários.
Justiça
O princípio da justiça está relacionado com a equidade e imparcialidade na distribuição de benefícios e ônus na sociedade. No contexto do RTBF, a justiça implica equilibrar o direito individual à privacidade e ao controle de dados com o interesse público em aceder a informações, como o direito à liberdade de expressão e informação. Aplicar o RTBF de forma justa significa garantir que a remoção de dados pessoais não comprometa o acesso a informações de interesse público ou infrinja os direitos de outros indivíduos.
Quem pode solicitar o Direito ao Esquecimento?
O Direito ao Esquecimento pode ser solicitado por qualquer cidadão da União Europeia (UE), residentes na UE, ou pessoas cujos dados estejam a ser tratados por organizações que operem na UE ou que ofereçam bens e serviços a cidadãos ou residentes da UE, de acordo com o Artigo 3 "- Âmbito de aplicação territorial" - do RGPD. Alguns países fora da UE possuem leis locais semelhantes que permitem direitos de exclusão de dados, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil ou a California Consumer Privacy Act (CCPA) nos Estados Unidos.
Perspectivas Específicas no Contexto da Saúde
Atualmente, a saúde é uma das áreas mais promissoras para a implementação de sistemas de IA. À medida que cada vez mais dados de pacientes são recolhidos e utilizados em modelos de IA nos cuidados de saúde, a privacidade dos pacientes fica exposta a um elevado risco. Assim, a “saúde inteligente” é um setor onde a tecnologia deve cumprir leis, regulamentos e princípios de privacidade e segurança, de modo a garantir que a inovação é utilizada para o bem comum e sem prejudicar o bem individual. Destacamos algumas perspetivas que merecem alguma reflexão no contexto da saúde:
Dados Genéticos
A exclusão de dados genéticos envolve questões sobre identidade individual e coletiva, autonomia, privacidade e dignidade humana e ainda o impacto para gerações futuras. O RTBF neste contexto não é absoluto, sendo que uma abordagem individualista da privacidade genética, materializada através da solução extrema de apagamento de dados, desafia a combinação de interesses familiares e de pesquisa científica.
Transição de Género
Pessoas transgénero podem desejar excluir dados relativos à sua identidade de género anterior. Nestes casos, o RTBF apresenta-se como uma forma poderosa de controlo sobre dados pessoais, especialmente dados de saúde que possam revelar um género com o qual estas pessoas não se identificam e que rejeitam. Contudo, o RTBF entra em conflito com circunstâncias médicas, como o rastreamento de doenças genéticas (relevante para a descendência biológica) ou a necessidade de dados médicos para tratamento de problemas de saúde que se manifestam de forma diferente com base no sexo biológico ao nascimento. A proteção dos direitos à privacidade e à autodeterminação deve ser equilibrada com a necessidade de informações precisas para assistência médica e estudos clínicos.
Reprodução Medicamente Assistida e Doação de Gâmetas
Este é um tema controverso devido ao conflito entre a regra do anonimato e o direito de identidade e de conhecer as suas origens. A perspetiva do RTBF alargada para incluir o direito dos dadores de gâmetas a permanecerem anónimos vai contra a tendência geral de reconhecer que os descendentes nascidos de gâmetas doadas têm o direito de aceder à informação relacionada com os seus progenitores genéticos, principalmente na Europa. Isso pode levar a exceções em cada país ou até a abolir completamente o estatuto de anonimato dos dadores.
COVID-19 e Interesse Público
Durante crises de saúde pública, como a pandemia, o RTBF pode ser restringido para proteger a saúde coletiva. Aqui, a proporcionalidade entre o direito individual e o interesse público, assim como as implicações legais e éticas na interface entre o direito individual à privacidade e os interesses coletivos da saúde pública, tornam-se fundamentais.
Sobreviventes de Cancro
Os sobreviventes de cancro enfrentam discriminação social e financeira como consequência da sua doença. Aplicar o direito ao RTBF relativamente ao acesso de instituições financeiras ao historial médico, particularmente à informação sobre o cancro, pode ser importante para estes pacientes quando se candidatam a um seguro de vida ou de saúde, procuram um empréstimo, querem adotar ou iniciar um negócio. Isso pode permitir um acesso justo dos sobreviventes do cancro aos serviços financeiros.
Considerações Finais
Resumindo, o RTBF representa um avanço significativo na proteção da privacidade dos indivíduos, especialmente no ambiente digital, onde as informações pessoais podem ter uma longevidade indesejada e um impacto não imaginado sobre a identidade e reputação de cada pessoa no presente e no futuro.
No contexto da saúde e da investigação em saúde, o RTBF apresenta complexidades únicas, pois envolve dados sensíveis que podem ter repercussões não só para o indivíduo, mas também para familiares e para a sociedade como um todo.
Neste âmbito, surgem desafios específicos na aplicação do RTBF, como nos casos de dados genéticos, transição de género, reprodução assistida e emergências de saúde pública. Essas situações demonstram que o RTBF não pode ser aplicado de forma absoluta; ele deve ser adaptado de acordo com os contextos, respeitando tanto os direitos individuais quanto os interesses da sociedade. Assim, conclui-se que a aplicação do RTBF em dados de saúde exige uma abordagem ética e jurídica equilibrada, que considere os princípios fundamentais da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.
A autonomia é fortalecida ao permitir que o indivíduo controle quais as informações pessoais que devem ser apagadas. Contudo, a proteção dos dados também deve garantir que a exclusão de dados não compromete o bem-estar coletivo ou a integridade de dados importantes para a saúde pública e para a investigação científica. A justiça, por sua vez, exige que o direito à exclusão de dados seja balanceado com o direito coletivo de acesso a informações essenciais.
Concluindo, o RTBF é uma ferramenta valiosa que, quando aplicada com responsabilidade, contribui para a proteção da privacidade e dignidade individual. No entanto, a sua implementação no setor da saúde deve ser cuidadosamente regulamentada, estabelecendo diretrizes que harmonizem o respeito pela privacidade e pela autonomia com a necessidade de dados precisos para tratamentos médicos e pesquisa.
Referências
- General Data Protection Regulation – Articles 3,6,9, 17, 21 and 89.
- Direito ao Apagamento dos Dados – SPMS
- Direito ao Esquecimento – Diário da República
- Westin, A. F. (1967). Privacy and Freedom. New York: Atheneum.
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- Beauchamp, T. L., & Childress, J. F. (2013). Principles of Biomedical Ethics. Oxford University Press.
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- ESMO – Right to Be Forgotten